Crónica de Alexandre Honrado
Esta sociedade do espetáculo
Quando falo de algum autor, em especial se for daqueles que se inserem no apertado grupo do pensamento e dos pensadores mundiais de qualquer época, não espero que saibam de quem se trata ou que conheçam aquele a quem me refiro. Espero, isso sim, que depois de apontá-lo a dedo – a dedo de texto que é o meu mais fiel ponteiro, de preferência sem artrose ou hesitações -, espero, dizia, que a partir dessa nomeação possa vir a ser reconhecido. “Sim, pois, li isso num texto de um tipo qualquer, esse nome parece-me familiar”.
O tipo qualquer – eu – dá agora ao texto a presença de Guy Dabord.
Há muito que não me lembrava dele e todavia a sua obra (velhinha, de 1967), tem andado presente no meu raciocínio como uma parceira pontual de jogo de xadrez, uma amiga íntima, uma fiel conselheira: La societé du spectacle. A essa obra seguiu-se Commentaires sur la societé du sepctacle, ensaio de 1988. Distam no tempo, não no conteúdo.
Vivemos, entre outras possibilidades de interpretação, nessa mesma sociedade do espetáculo. Somos maus atores de uma intensa farsa, subimos a palcos onde não esperamos a cegueira da luz, temos um papel a desempenhar e quase sempre sabemos muito mal o texto. Só somos credíveis porque ocupamos universos culturais compostos de atores medíocres, como nós. Não podemos dispensá-los, pois é deles que escutamos os aplausos, mesmo os que produzem sem vontade, à espera dos nossos likes, isto é, dos nossos aplausos-resposta.
A sociedade do espetáculo tem palcos sangrentos e tremendos, como a Rússia estalinista, a Alemanha nazi, a Itália mussoliniana, a China Maoísta, a Cuba Castrista, o Chile de Pinochet, o Irão de Khomeini, a Espanha de Franco, o Portugal de Salazar – cenários de ditadores loucos em palcos tingidos, inundados a sangue de inocentes, os imolados pelo poder e pela ditadura de alguns sobre os direitos de todos os outros.
Não se esqueçam os palcos de uma crueldade mais difusa, como os que foram montados para o mundo pelos Estados Unidos finda a Segunda Guerra Mundial, que levaram à América de Reagan e dos Bush, de Trump (de recente e má memória), o Reino Unido de Thatcher, aquele quintal (que envergonha a França) onde a família Le Pen prospera, o velhote Jean-Marie e a esperta da filha, a Marion que gosta que lhe chamem Marine, ou as novas diatribes de Putin (que assinou uma lei que lhe confere a possibilidade de governar até 2036, já terá uns belos 84 anos), Bolsonaro (ainda há dias, irritou-se com um grupo de jornalistas e insultou-os após ser questionado sobre as mais de 500 mil mortes que a covid-19 fez no país e a sua posição sobre o uso de máscaras, porque será que todos os negacionistas são assim, incultos, néscios, primários, criminosos?) ou ainda o espetáculo estonteante de Xi Jinping, que aparentemente quer ser o líder absoluto deste mundo estranho que é o nosso.
São exemplos extremos, claro, podíamos recolher muitos mais. São demasiados.
A sociedade do espetáculo, que andava a viver alegremente a inebriante etapa das redes sociais, onde os holofotes têm luzes trémulas e muito passageiras, passou a viver agora a sociedade do espetáculo Covidesco (o mundo da Covid de modelo grotesco-hollywoodesco), levado a todos nós pelo triste infotainment (os meios de informação que brincam com as notícias ou as desprezam. “O infoentretenimento, também chamado soft news, como forma de distingui-lo do jornalismo sério ou hard news, é um tipo de meio de comunicação, geralmente televisão ou online, que fornece uma combinação de informação e entretenimento. Exemplo: os telejornais “à portuguesa”).
A sociedade do espetáculo tem agora como protagonistas a massa dos que se julgam impunes. Que tiram as máscaras, que contagiam o seu semelhante, que desdenham da vida. Que saem como as feras enjauladas para uma ilusão de liberdade, onde as opções são matar ou morrer. Porque primeiro está o espetáculo (não necessariamente com uma grande banda em palco), o show de viver a vida entrando pela porta do cemitério mais próximo, desafiando a sorte, levando os inocentes que se encontram pelo caminho para o corredor da doença e da morte, mas, muito pior do que isso, impondo a estupidez aos outros, que, em qualquer dos casos, mereciam melhor sorte.
Alexandre Honrado
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presunção e água benta…